BORGES E GONÇALVES DIAS –
por M. Paulo Nunes
NUNES, M. Paulo. Modernismo & Vanguarda. 4ª. Série. Teresina, PI: Academia Piauiense de Letras, 2015. 200 p. (Coleção Centenário, 54) 15,5 X 22,5 cm. ISBN 978-85-64231-60-3 Ex. bibl. Antonio Miranda (p. 75-76)
BORGES E GONÇALVES DIAS
Na mais completa biografia de Jorge Luís Borges que já pude ler ultimamente, de autoria da escritora argentina Maria Esther Vázquez (Tusquets Editores - Barcelona - 1996), que manteve uma profunda relação de amizade com o autor de Ficciones, da qual surgiram várias obras em parceria, há uma passagem sobre a qual desejaria tecer algumas considerações. Trata-se da sua ocasional descoberta do nosso Gonçalves Dias, um dos maiores poetas do Brasil e das Américas, pela forma como adiante se verá.
Narra aquela excelente biógrafa e historiadora da literatura que na viagem da família de Borges à Europa, em princípios de 1914, para onde o pai do escritor se vira forçado a mudar-se por algum tempo, a fim de consultar especialistas, pois estava perdendo a visão, viagem de que resultaria um exílio de quatro anos, em Genebra, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, o navio tocara no porto do Rio de Janeiro. Georgie, como familiarmente o chama Maria Esther, quedou-se largo tempo na amurada do navio, observando o movimento de carga e descarga e, mais distante, "la ciudad deslumbrante". De imediato chamou-lhe a atenção um garoto mais ou menos de sua idade que estava sentado no molhe com as pernas estendidas até a água. O garoto cantava, em um português claríssimo, uns versos que Borges nunca esqueceu e até a velhice recordava com emoção: "Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá", que traduz para o espanhol: "Mi tierra tiene palmeras / donde canta el sabiá", que ele identifica como uma espécie de estorninho menor que o da província de Buenos Aires. A canção continuava com um pedido, informa a biógrafa: "Não permita (sic) Deus que eu morra/ sem que eu volte para lá", com a tradução: "No permita Dios que muera / sin que yo retome allá". "E quando o "muchachito" que cantava, acrescenta, chegou à última estrofe, ao que o ouvia do costado se lhe encheram os olhos de lágrimas; também ele queria voltar, já sentia a nostalgia de sua cidade, de seu bairro, da rua que acabava de abandonar". (Ob. cit., p. 39)
"O autor dos versos tão populares que os recitava a gente da rua, diz ela, era Antonio Gonçalves Dias", acrescentando que este poeta romântico, filho natural e mestiço, foi amparado pela viúva de seu pai que o mandou estudar na Universidade de Coimbra. Ao voltar à pátria, foi funcionário do governo, mas, muito doente, talvez tuberculoso (sic) retornou á Europa na esperança de encontrar remédio para seu alquebrado físico.
Ao dar-se conta (seguimos ainda a informação de Maria Esther) de que não havia para ele salvação, quis morrer em sua pátria "pero tuvo mala suerte".
O navio que o trazia naufragou frente á costa do Brasil, no baixio dos Atins. Teria ele quarenta e um anos. Somente esqueceu de lembrar, como está em todas as nossas antologias, que aquele excelso poeta, seguramente o maior nome de nossa poesia, morreu avistando as palmeiras de sua térra natal, onde canta o sabiá.
Esta informação tão simpática a respeito do nosso grande poeta traz-me á mente urna suposição que talvez um estudo de intertextualidade entre os dois poetas, o argentino e o brasileiro, pudesse aclarar melhor. Quem sabe se muita coisa da nostalgia, da profunda solidão, do tom elegíaco ou daquele "pesadumbre" da poesia de Borges não teria recebido o influxo do celebrado autor de "Ainda urna vez, adeus", e "Se se morre de amor", dos Novos cantos, e das mais belas composições líricas da língua portuguesa?
22 de outubro de 2000.
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